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2 de outubro de 2018

Nosso Coração


Para Gabriela Neves



O que dizem os astros, os sacros, os sábios
- E por que não os poetas? -
Pouco tem nos importado
Pois não há filosofia, profecia, tutorial no Youtube
Que explique o estado de nosso coração
O único e múltiplo coração
Interseção entre o que és e o que sou

Quando voaste para longe, adoeci
E demorei até séculos para perceber
Que tu eras quem impedia a avalanche
E sem ti tudo desmoronaria
Mas bastou mostrares tuas asas de Borboleta
- imensamente maiores do que a parte que me falta-
Para o nosso coração voltar a pulsar sua vermelhidão
Inteiro, indivisível.

Sermos esses seres
De asas muito maiores do que o corpo
É o que de fato nos une
Sem GPS, sem google maps, sem promoção da Gol
Não importa a localização
Pois a distância entre o meu lugar e o teu lugar
É o tamanho do nosso coração
Ponte entre onde estás e onde estou

Quando demoraste a chegar, enlouqueci
E quando chegaste antes da hora, amei
Reconheci que teu tempo é o relógio mais querido
E mais temido
Pela ansiedade da minha alma
E por isso não busco mais as horas nele
Vejo o teu sorriso e aí está o momento exato
De o nosso coração bater no ritmo da felicidade
Harmônico, consonante.

Sermos exatamente o que somos
Com os relógios muito maiores que o tempo
Além dos fusos, dos sinos e dos portões do ENEM
É o que nos mantém contemporâneas
Já que as horas que se desencontram
Nos verões entre o teu ser e o meu ser
São orquestradas pelo nosso coração
Compasso de quando estás e quando estou.

Quando revelaste tua imagem, sonhei
Pensando não haver forma de seres mais bela
E por errar de tal maneira, fiquei surpresa
Quando soltaste teus cachos e ficaste imensa
Diante de mim
Agora não sei encontrar beleza mais pura
Longe dos retratos capturados pelo nosso coração
Atento, perspicaz.

Apesar de aparecermos tão distintamente
Nascemos do mesmo ventre
E se não há semelhança clara
Nas formas vistas nas ruas, nas fotos, no Instagram
Basta nos olhar na alma
Pra saber que nascemos do mesmo parto
Somos filhas siamesas da realidade
Pois os tons entre o teu espelho e o meu espelho
Estão justapostos no nosso coração
Nuances de como és e como sou.

O que dizem os rótulos, os rastros, os fatos
- E principalmente os chatos -
Pouco tem nos importado
Pois não há teorias, equações ou tweets
Que estimem quantas coisas cabem em nosso coração
O único e múltiplo coração
Interseção entre o que és e o que sou

24 de fevereiro de 2017

Do teu porão

Estou despida
Viste nua minha alma
Ouviste solta minha prosa
Aprendeste a revirar minha vida

Conheces a quem me ama
Como a palma da tua mão
Sabes do meu drama, meu medo
Do segredo que meus olhos derramam

E eu, em ti, fui reprovada
Não há caminho que eu conheça
Não há ruído que não me soe
Qualquer coisa sem tradução

Sei menos dos teus dias
Do que posso prever em tuas caras
Me privaste da beleza
Dos teus amigos, teus motivos, tua sala
Me escondes em teu porão

É essa injusta ignorância
Quem me leva pelas mãos
E que já não basta aos desejos
Que em mais ou menos tempo
Deixarão de resistir

"Que amor era esse que não saiu do chão?"
Enquanto a canção me embala
Meu corpo inteiro se arrepende
Por ter se doado sem temer
Pelo já rastejado coração




15 de junho de 2016

Carma

Vive. Como se viver fosse só acordar e dar passos retos rumo às ordens, às ruas, aos pratos de comida. E vivo permanece durante os dias mais quentes, suando no suor dos outros que esbarram, ouvindo o som que toca aleatoriamente, deixando na frente das portas entreabertas das moças atrasadas bilhetes cretinos que não dizem nem se vai nem se volta.

 Na pressa de viver mais em menos tempo, tropeçou nas falhas da incerteza e caiu na besteira de querer amar. Amando é estranho, não sabe amar direito. Olha pra toda a gente que está ali parada, sedenta, excitada, humilhada e não sabe escolher. Oferece alguns sorrisos tímidos, dá piscadelas inadequadas, anda de mãos dadas sem fazer promessas, deixa grudado na gente o cheiro da eterna inverdade.

 Disse a si mesmo num raro momento de espontaneidade que precisa ter critérios perfeitamente calculados. A partir de hoje não gosta de mulheres vazias, está cansado de pessoas vazias, mesmo sem nunca, nunca ter quisto encher o próprio peito com nada além do ego, do amor próprio exacerbado, da mania de autossuficiência. Porque os outros seres, ali parados a esperar qualquer sinal, ou são incríveis e pouco belos ou belos e vazios.

Importa que sejam belos, belíssimos, que se destaquem no meio daqueles que mendigam do seu desesperado afeto. Antes possuir um corpo belo e vazio a conviver com o conteúdo dos corpos maltratados. Por que caiu na besteira de pretender amar se sabe que só existe pra cumprir o ritual da santa mediocridade? Mas caiu. E na tentativa de amar como amam as crianças, os jovens e as mulheres que se pintam das mais perturbadoras provocações, fez chorar a alma da gente.

- Não sabe que ama mal, criatura? Não sabe que anda desgraçando as já difíceis existências (ou insistências) que toca? Quando deixa insaciável sede de cantarolar as canções de amor, é a marcha fúnebre que estreia a lenta morte da gente.


Ainda vive. Como se viver fosse o remédio contínuo contra a loucura que é existir. Vive nas classes, nos computadores, nos ensaios. Mas inventou de querer mais do que podia. Inventou de querer amar alguém além de si, inventou de sentir o que não lhe caberia nem na próxima vida. E nesse infeliz tropeço fez surgir na alma da gente uma cicatriz maior que o corte.

28 de março de 2016

Dos Restos

Dos corpos que quis
Pequenos,  esguios, tímidos
Só o teu virou poesia
Quando cruzou com minha língua

Dos pelos deixados no rosto
Desleixados da vida
Os teus me arranharam mais fundo
Cortes na alma

Das muitas bebidas oferecidas
Quase sempre amargas
Só a tua era cristalina
Era pura, sacra

Das noites em bares solitários
Com músicas que me torturam
Dos porres que muitos tive
Dos amores que nunca duram
Dos espelhos que revelam o mundo
Dos cheiros mais entorpecentes

Só restou a vontade agoniante
De, por um segundo,
Estar de novo em ti



16 de novembro de 2015

Atrasos

Não há claridade. Entre mim e a realidade já houve muito menos dessa poeira sufocante. Hoje eu tusso, e tossiria ainda que não tivesse voltado a fumar. Inclusive, voltei a fumar e a me movimentar. Essa contradição que faz meu pulmão pedir arrego e que me faz ter um troço estranho quando estou correndo, essa tontura que dá quando respiro fundo é que me faz acreditar em estar vivo.  Porque no mais existem sombras de formas duvidosas atrás das nuvens, atrás dos pensamentos e do TIC TAC eterno que ecoa nas paredes do meu crânio. Como se o trem fosse passar e eu não tivesse feito as malas, uma vida de passagem comprada e de brinde um eterno atraso. Antes de dormir as horas que tenho de sono estão contadas, durmo agora que é pra acordar disposto. Mas não adianta, meu travesseiro é um playground onde cada minuto brinca e ri da cara de quem já está sonhando, mas os olhos nem piscam. Tudo que eu preciso é que um caminhão invada a casa e passe em cima da minha cama. Essa ideia da dor de verdade, da angústia de verdade, da inveja, do ciúme, da saudade, do desespero não saem da minha mente.  Mas tudo que sinto é o que não sinto. Estou vazio. Raras vezes, de surpresa, vem o medo me fazer cócegas. Nesses dias a história de comer até não aguentar meu peso nem funciona, já que meus pés não reagem. Por isso é que estou doente. Por isso a falta do ar que não faltou, a taquicardia paralítica, a náusea sem vômito. Porque meu corpo precisa compensar tamanha inutilidade desse epitáfio iminente. Por isso me caem os cabelos, o sorriso e os desejos. Só não cai a ficha de que estou pouco velho pra muito louco.

31 de agosto de 2015

Por um tapa

Já não sustento nenhum dos meus vícios
Me tiraram aquele tumor da alma
E no lugar ficou uma buraco vazio
-Uma pena!
Aquilo era o que me preenchia
Todo resto de mim é nada

Esqueceram de me dar um tapa por ser egoísta
E olha que esse é meu esporte favorito
Nunca acharam bonito
Minha inveja podre de todos os dias

Aliás, nunca acharam nada bonito
Nem os poemas, nem o canto desafinado
Nem os desenhos malfeitos
Ou qualquer outro detalhe tão trabalhado
Dessa inconveniente mediocridade

Depois levaram quem me amava
Do meu verso mais afável
A minha crueldade mais desumana

Deixando ao redor esses poucos
Que não ousam atravessar a bolha

Esses que não aguentariam,
Nem à base do café mais forte,
Os dias em que acordo atravessado
E revoltado com questões inúteis

O que resta de mim é uma criança 
Com um boletim nas mãos
Procurando um pai, um irmão, a babá
Que lhe cole uma estrela na testa
Pelo único azul em matemática
(Um seis e meio que arredondaram pra sete)


Uma criança dentro do adulto perdido
Que por medo, por vergonha ou por sina
Escreve qualquer coisa num livro
Antes de dormir infinito
Ou até parar a função soneca do aparelho emprestado
Saindo de casa atrasado- e sozinho.

3 de maio de 2015

Direito ao silêncio

                                                                             (...)
A noite é a parte mais difícil. A nitidez do sol , que a tudo faz enxergar sem medo, cede espaço ao escuro com suas portas abertas a claras imaginações. Se enxergar com os próprios olhos é um risco, ver com as asas da mente é um passo em direção ao abismo. E o silêncio que repousa sobre todos os corpos semi-mortos do fim do dia é um convite eterno para que eu devolva as palavras que não pude digerir. Quando o corpo já não agüenta e a mente não lhe dá uma trégua- em sua luta incansável pra me fazer perder a linha- me resolvo em segredo. Entre os dedos já trêmulos, minha caneta brinca, e desenterro da minha mente conturbada tudo o que está retido- perde-se apenas o que se dissolveu-  transformado em tinta invisível para a maioria dos meus. A lua que se vale de algum brilho para ser vista à noite, enorme e alva, me acena lá de cima, para me batizar na poesia das almas cegas, da mudez do dia, das confissões noturnas.

Eu tenho um corpo calado, e uma alma que assopra clichês nunca lidos.